Quem acertou na mosca foi Ben, o tio de Peter Parker. Sabe, Peter Parker, aquele fotógrafo? Bom, pouco antes de expirar, Tio Ben olhou para seu sobrinho Pete e disse:
- Não se esqueça, Peter. Grandes poderes trazem grandes responsabilidades.
Peter Parker, nas horas vagas conhecido como Homem-Aranha, levou a lição consigo por toda sua vida de herói de quadrinhos e telinhas e telonas. Pois é, tio Ben estava certo, mais que certo. E é essa a lição que nossos heróis modernos teimam em não entender ou aprender.
Vivemos a era da celebridade veloz – um tempo em que evidência vale dinheiro. Mais que isso, uma era em que a vida alheia se tornou um objeto de consumo. A narrativa da vida real substitui a ficção – seja numa jaula de BBB ou nas revistas de sorriso & botox que infestam as bancas de jornal. Fulana casou! Beltrana abriu seu apartamento! Sicrana emitiu um flato e moveu a sobrancelha!
No início deste ano, a Newsweek publicou um excelente artigo sobre o tema – que discutia até o valor artístico da “narrativa real” – com todos seus dribles e temperos. Mas isso é tema para outro debate. O que se discute aqui é a fronteira entre publicidade e privacidade. Nunca se viu um jogador de futebol ou sub-celebridade afim abrir seu apartamento e coração ou casamento e reclamar, correto? Mas quando o caldo entorna – ah, invasão, crime, ninguém pode sair na rua!
Vivemos também a era da conspiração full-time. A profusão de fóruns e blogs na internet alimenta e retro-alimenta nosso Fox Mulder interior. Em todo assunto debatido – seja ele Nardoni, Dourado, Dilma, dedo médio do Ronaldo ou Serra, existe aquele “algo estranho aí”. Tudo tem motivo oculto. Toda notícia publicada tem uma agenda. Se publicou, é por esse interesse. Se não publicou, ah, alguém segurou lá em cima. Como se houvesse sempre uma razão inconfessável – uma articulação nos bastidores – seja para convocar um Ronaldinho Gaúcho neymarizado… ou para destruir essa ou aquela reputação. Ao que parece, todo mundo desconfia mesmo que vivemos num cruzamento de Arquivo-X com Fringe – e que todos somos marionetes.
Talvez porque a era da notícia veloz favoreça o açodamento e desafie o jornalismo sério. Apurar, checar, confirmar informação não é tarefa simples. Requer trabalho e tempo. Por vezes, a notícia que prometia uma manchete sensacional se transforma em poeira depois de apurada e checada. E, na imprensa correta, poeira não é publicada . Por isso, a preguiça, quando falamos de jornalismo, é inimiga da seriedade. E parceira número um dos achocratas – os burocratas do achismo – que adoram um “ouvi falar” e um “teria sido”.
A tragédia que tem como pivô o goleiro Bruno traz uma lição. No início do ano, quando reportagens em diversos veículos no Rio de Janeiro, apontaram a vida desregrada que levavam alguns jogadores do Flamengo, a reação geral foi desconfiar da imprensa. Jogadores e torcedores (e até alguns colegas) criticaram um suposto jornalismo-de-perseguição. Sob essa ótica, não haveria nada de anormal na relação de Wagner Love e Adriano com traficantes. Nada demais nas festas com sexo exótico e bebida. No filme “8 milímetros”, Nicholas Cage é um detetive que mergulha no submundo para investigar o assassinato de uma atriz pornô. Numa das cenas, ele se olha no espelho e ouve sua voz, em off, dizendo:
- Se você dança com o demônio, o demônio não muda. Mas você muda.
Hoje, vale lembrar que muitos torcedores chegaram a dizer “querem derrubar o Flamengo” e sandices outras. Existe uma fronteira que separa o interesse público do privado, claro. Mas, quando o sujeito escolhe uma vida pública, essa fronteira é difícil de precisar. O caso de Adriano foi o mais criticado. Não interessaria, a priori, ao público esportivo, saber se havia anões besuntados e asnos na festa de ninguém. As preferências sexuais e zoológicas (ou zoológico-sexuais) de cada um… pertencem à esfera privada – embora possam indicar uma vida desregrada. Mas… dizer que que não é esportivamente relevante, por exemplo, saber que Adriano tinha uma serpentina de chope em casa… bom, zagallemos aqui – essa é difícil de engolir.
Vale a pena recapitular. Foi a imprensa que disse que Adriano tinha problema com bebida? Não. Foi ele mesmo – em carne imperial e osso. E depois a sua noiva, Joanna (“quando ele bebe, não sabe o que faz”). E depois o então vice de futebol de seu clube, Marcos Braz. Logo, se alguém que deixou de treinar 11 vezes – e ficou fora de jogos importantes por “problema público e notório”, alguém que “quando começa a beber não consegue parar”… tem uma serpentina de chope em casa… e isso não é relevante… é melhor voltarmos ao tempo dos focas amestrados – ou do jornalismo assessor de imprensa.
Ah, Williams brigou no bar, e daí? É, Cabañas também brigou no bar e – engraçado – você viu algum torcedor reclamar dessa notícia? Caro torcedor rubro-negro, qual foi sua reação quando Ronaldo teve seu entrevero com travestis? Ou quando sumiu na noite em Presidente Prudente? Conspiração também? Mas a teoria conspiratória não é o pior dos males. Ela é apenas ingênua. Pior é a teoria sub-sociológica – que enxergava nas reportagens sobre Adriano, Love e Bruno uma perseguição ao “negro e pobre que volta às origens”. Onde estava essa teoria quando o branco e rico Júlio Cesar apareceu no grampo com um traficante? Ou quando Edinho (preto e rico), filho de Pelé, foi preso?
Adriano cresceu na favela – e é mais que louvável sua relação com a Vila Cruzeiro. É um exemplo bacana – por dois lados. Primeiro, porque sublinha que dinheiro e luxo não compram a proverbial felicidade. Segundo, porque defende o próprio conceito de favela – e de favelado – vitima de tanto preconceito. O Imperador de chinelo e bermuda, sem camisa, soltando pipa, fazendo churrasco na laje… é uma imagem que diz muito para milhares de pessoas. Se parasse por aí, não haveria um senão. O problema é que não parou por aí.
Adriano foi criado com meninos que viraram bandidos. Isso é natural na cidade partida de São Sebastião. Ninguém precisa de telescópio para observar nossa tragédia social. Uma favela dominada pelo tráfico é uma fábrica de ilusões. Na favela, o traficante é sinônimo de sucesso; a arma é um símbolo de poder. E infância abreviada é a norma.
Façamos um breve corte para uma cena recente na favela da Rocinha. No início de março deste ano, a policia civil do Rio fez uma operação surpresa para capturar (ou matar) o chefe do tráfico no local, conhecido apenas como Nem. Houve tiroteio. Três helicópteros sobrevoaram a favela – atirando. Imagine por um instante uma criança nessa favela. Ela está acostumada com a vida regida pelo tráfico de drogas. Existem armas, um código de conduta particular – mas há relativa tranqüilidade. O que a policia traz quando invade essa favela? Tiroteio, barulho, desordem. Uma óbvia sensação de terror. Para essa criança, a polícia é um símbolo do mal. E o traficante representa o poder que ela conhece – com todos seus códigos particulares.
Claro, essa equação perversa só será desfeita quando as favelas voltarem a fazer parte da cidade oficial – quando houver polícia, saúde e educação dentro das comunidades. Enquanto isso não acontece, voltemos ao tio do Homem-Aranha. O jogador de futebol que deixou a pobreza é o cara que realmente deu certo – que através de um talento legal conseguiu sucesso, dinheiro e status. O poder dessa imagem é muito grande. Ben Parker puro: grandes poderes, grandes responsabilidades. Ah, mas eles não querem ser exemplos – dizem uns. Podem não querer – mas são. Simples assim: podem não querer – mas são.
Quando um jogador de futebol se relaciona com bandidos… ele está chancelando, na mente de cada criança (favelada ou não), o tráfico como uma coisa cool. Está dizendo “esse cara aqui é maneiro”, assinando embaixo de uma pretensa rebeldia contra o “sistema”. Dizendo “eu venci, esses caras aqui também… eles também derrotaram esse sistema vil que nos condena – nós, favelados; nós, meninos pobres – à pobreza e à falta de oportunidade”.
Cada menino da favela vive, desde pequeno, esse mundo duplo – a atração do tráfico, do tênis maneiro, do dinheiro fácil… contra o mundo despossuído, da educação ruim, do trabalho escasso, das oportunidades poucas. Qual o significado na mente dessas crianças dessa imagem? O símbolo do sucesso “lá fora” ao lado do símbolo do poder “aqui dentro”?
Nossos tristemente jovens traficantes – filhos da nossa fábrica social de bandidos – deixaram há algum tempo de ser apenas vítimas do sistema. Eles, infeliz regra geral, aprenderam cedo as regras da barbárie. Podemos lamentar a sina de cada senhor das moscas carioca – e entender que nada disso acontece por acaso. Mas ninguém obriga ninguém a ser bandido. É sempre uma escolha. É essa fronteira que nossos heróis modernos precisam entender. A cada passo pro lado de lá – o crime agradece, uma mãe na favela tem mais chance de ver seu menino escolher o rumo do status súbito, da grana rápida, do fascínio pelas armas.
Vagner Love é o maior doador do Natal sem Fome da Rocinha – e isso é elogiável. Mas alguém acha que ele foi ao Baile Funk para “visitar suas raízes”? Logo ele, que nasceu em Bangu? Ele tem todo direito de se divertir na favela – mas ele sabe, muito bem, que nenhuma celebridade vai a local assim sem conhecimento do chamado movimento. Ele sabia o que estava fazendo. Esse vínculo é o pior recado que um ídolo pode passar. A proximidade com o crime é sempre perigosa. É a frase de Nicholas Cage – o demônio não muda – mas você muda. O lastimável caso Bruno é algo completamente fora da curva – tem pouco a ver com futebol e muito com a ilusão da celebridade – dos poderes que o status de herói moderno traz – o hábito de viver longe das regras – seja acima ou abaixo delas.
No gibi número um do Homem-Aranha, acontece uma tragédia. O jovem Peter Parker, feliz com seus novos poderes, resolve ganhar dinheiro num festival de lutas. No caminho, vê um assalto, mas resolve não perseguir o ladrão, pensando “isso não é problema meu”. O mesmo bandido a seguir, assalta e atira em seu tio. Peter chega a tempo de ver o velho Ben Parker agonizando. E ouve, culpado, suas últimas palavras. Grandes poderes, grandes responsabilidades, Peter. Neste momento, no mundo maravilhoso da Marvel, o Homem-Aranha começa sua luta contra o crime.
Cada ídolo ou símbolo escolhe seu caminho. Você pode ser Pelé ou Maradona. Pode ser Michael Jackson ou Madonna. De alguma forma, você tocará milhares de pessoas – e de alguma forma elas serão influenciadas por suas mínimas atitudes – queira você ou não. Você pode não gostar disso, pode não querer isso, pode dizer “é minha vida, eu faço o que quiser”. Pode. É um direito. Quantos meninos estão olhando para suas camisas autografadas por Bruno, hoje, com horror?
Alguns escolhem a demagogia. Outros a hipocrisia. E há aqueles rebeldes quase sempre genuínos – como Romário. Todos são, afinal, humanos – erguidos por uma habilidade específica a um movediço panteão. Adriano e Vagner Love não são vilões modernos, pelo amor de todos os impérios (Bruno talvez seja, infelizmente). São ídolos imperfeitos – como Peter Parker, que deu de ombros. Dar de ombros tem preço, amigos. É essa lição que nossos heróis modernos precisam aprender.
O que você acha do pai que fuma diante do filho?
Ou se droga diante do filho?
Pois é.
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